O que falta ao Brasil de 2023 para que comecemos a nos referir como regime?
- Ezequias Almeida
- 24 de set. de 2023
- 4 min de leitura
Assim como outras ditaduras, o Brasil coleciona presos políticos, afastamento de parlamentares, cerceamento da liberdade de expressão, aparelhamento da justiça e fishing expedition

Parece até incoerente escrever um artigo sobre uma possível ditadura, vivendo na atual conjuntura e tendo o direito de criticá-la. Porém, falamos aqui de uma ditadura que busca ter um verniz democrático. Por isso a possibilidade de criticar pontualmente. Se dependesse unicamente do grupo de 8 homens que pensam encarnar a democracia, certeza que esse artigo não seria possível. Alexandre de Moraes serve a interesses que nem ele mesmo sabe quais são, por isso o limite nas decisões e a redução do avanço a partir de 2023.

Na atual democracia que o Brasil diz viver, há, no quartel da polícia militar do Rio de Janeiro, um ex-deputado federal que foi preso durante o exercício do mandato sem crime previsto e fora dos meios legais. Segundo o ordenamento jurídico em vigor, um parlamentar só poderá ser preso em flagrante delito por crime inafiançável. Portanto, a prisão de Daniel Silveira pelo supremo tribunal federal(STF) foi flagrantemente ilegal. Isso por que o crime imputado a ele seria de atentar contra a democracia. Como ele fez isso?
Em 2019, quando o STF iniciou sua cruzada para conter as criticas a corte, Moraes decide censurar uma matéria jornalística do portal O antagonista! intitulado o-amigo-do-amigo-de-meu-pai o que seria o apelido de Dias Toffoli, ministro do supremo e par de Moraes no STF, na lista de beneficiados da Odebrecht. Neste artigo a revista dá ciência a documentos obtidos com exclusividade. Porém, por entender que os documentos eram falsos, Moraes suspende a reportagem, estipula multa diária de 100 mil caso não fosse tirada do ar e marca depoimento dos responsáveis na carceragem da polícia federal. A repercussão não poderia ser pior: imprensa vê que o STF ultrapassou os limites e joga chumbo grosso, até que a decisão foi revertida pelo próprio Moraes.
O que parecia ser o fim da cruzada, era apenas o início: em meio a tantas decisões fora da lei, Alexandre decide prender o deputado federal Daniel Silveira, à época filiado ao PSL. Os crimes? Criticar de forma dura e vil o STF e os ministros do supremo. Duas situações marcaram esse evento na história: Moraes prendeu Silveira com um "mandado de prisão em flagrante." e trouxe o flagrante por que as críticas feitas pelo deputado foi gravada, e que esse video seria um flagrante perpétuo. Até o mais leigo em matéria jurídica sabe que quando é expedido um mandado, não há necessidade de flagrante. Ou que prisão em flagrante não carece de mandato.
Uma igual ou pior ação delituosa viria mais tarde na suprema instância da justiça brasileira: não bastasse tanto abusos, em 2023 o STF decide quebrar o sigilo de mais uma pessoa, dessa vez o ex-presidente da república Jair Bolsonaro. Após ter acesso a esses dados sigilosos, a corte iniciou a sua mais perigos atitude: começou vasculhar tudo, configurando um fishing expedition ou "pesca probatória" em tradução livre. Como é sabido, para quebrar o sigilo de alguém você precisa apontar uma provável ação delituosa. Nisso, você só poderá investigar aquilo que foi apontado como ação delituosa. Se no decorrer do processo você encontra crimes ou indícios de crimes diferentes daqueles apontados na abertura do sigilo, eles não serão levados em conta diante do juiz.
Essa prática foi levantada pela própria vice-procuradora geral da república Lindôra Araújo no âmbito das investigações que envolvem Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro enquanto presidente da república:
"Os elementos apontados são por demais incipientes a recomendar quaisquer diligências ou medidas em face dos investigados, sob pena de se validar a pesca probatória, à semelhança de outras investigações em curso no âmbito do supremo tribunal federal."
A pesca probatória é isso: quebrar o sigilo bancário e fiscal de alguém sem um fato concreto e direto para investigação. Com isso, se faz varredura em busca de outros prováveis crimes. Isso é ilegal e não é aceito no ordenamento jurídico brasileiro. Aliás, práticas assim só são vistas em países autoritários e antidemocráticos.
É péssimo dizer, mas é preciso reconhecer: o que acontece no Brasil, principalmente a partir de 2018, não é normal para um país que diz democrático. Outro reconhecimento que é importante fazer é trazer ao debate o fato real de que o atual presidente da república foi, enquanto candidato, diretamente beneficiado pelas práticas ilegais aqui elencadas.
La démocratie c'est moi l Eu sou a democracia
Antes de se tornar o líder incontestável da Coreia do Norte, Kim II Sung era um militar habilidoso que lutava pela libertação da Coreia pelo império Japonês. Chegou a ser o coreano mais cassado pelo Japão, porém fugiu para a Rússia e assim evitou a morte. Coincidentemente, o homem que passou boa parte da vida lutando pela liberdade virou o opressor. Sob seu patronato a Coreia do Norte se tornou uma ditadura sanguinária e o país mais fechado do mundo.
No Brasil, os 9 ministros da suprema corte abraçaram uma cruzada para defender a democracia que estão dispostos até a ferir a constituição para conseguir isto. Não é segredo para ninguém que é um fato: não foi uma ou duas vezes que a lei virou apenas bravata. E parece que apontar essas "falhas" não adianta. Eles são a democracia. Como Robespierre, criaram uma revolução. Serão engolidos por ela?
O problema das revoluções é até quando ela estará sob o controle do criador. Como bem explica Flavio Moargenstern em seu livro Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs, as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, os eventos que acabaram com a chegada de Moraes ao supremo e com a direita ao poder, foram iniciadas pela esquerda e dominadas pela direita.
Como disse certa vez o ex-ministro do STF Marco Aurélio Melo, citando Machado de Assis:
"A melhor forma de ver o chicote é ter o cabo a mão. Mas o chicote muda de mão."
O perigo de tomar medidas ilegais é o fato de que, se você perder o controle da cruzada, vai enfrentar e amargar as medidas que outrora validou. E nesse caso, essas ilegalidades serão tidas como legais, já que haverá precedentes.
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